Salvador, 3 de Julho de 2035
A cidade não dormiu naquela noite.
O dossiê correu pelas redes como um tambor sendo tocado em fúria.
Foi printado, copiado, reupado, falado em grupos de whatsapp. Nas esquinas da Liberdade, do Engenho Velho e da Ribeira, os jovens se reuniram com celulares em punho, olhos arregalados e um sentimento que há muito não se via: fúria lúcida. No dia seguinte, a #SalvadorLivre foi o assunto mais comentado no país, apesar da tentativa da prefeitura de derrubar as hashtags e ocultar o termo dos buscadores oficiais.
No Palácio Thomé de Souza, Paolo estava em Pânico, a mesa de vidro na sala de crise tremia com a quantidade de dispositivos ligados, cada assessor dizia uma coisa e ninguém sabia o que fazer. O código quebrado havia se tornado opinião pública.
— Precisamos de uma nova nota. Algo mais firme - um assessor disse
— Nada disso. Precisamos de repressão, descubram quem publicou isso e prendam agora! - Paolo disse batendo com raiva nos braços da cadeira
— Já é tarde, O CIDH está se pronunciando – disse um dos assessores entregando o tablet a paolo
A última frase foi como um golpe no estômago de Paolo, após anos de trabalho e construção, ele estava vendo todo o seu império ir por água a baixo.
Não muito longe dali, partidos antes calados por medo, por cumplicidade, ou por conveniência agora viam na queda de Paolo uma chance. Deputados municipais exigiram uma comissão de investigação, Vereadores do interior da Bahia pediram audiência com a Procuradoria-Geral da República, A Ordem dos Jornalistas soltou nota em apoio ao autor da matéria ainda identificado apenas como J.Batista.
Mas o povo não esperou a burocracia e as manifestações Começaram, Começou com um bloco, Literalmente, Um bloco de rua, batucando e protestando, parando o trânsito no Campo Grande. Logo, outros surgiram em toda a cidade, bandeiras de terreiros se misturavam a cartazes escritos à mão, Idosos, estudantes, mães com filhos pequenos todos estavam indo para as ruas, não era mais esquerda ou direita, era a resistência contra o controle.
E a cada drone enviado para monitorar os protestos, mais gente aparecia com lasers, espelhos e latas de spray, derrubando o símbolo da vigilância com festa e tática.
Com seu império também desmoronando, Carla tentou resistir e fez uma live no instagram, rodeada de palmeiras artificiais, dizendo:
— Gente, isso é um ataque. Fake news. Nós só queremos o melhor pra Salvador, e a minha empresa sempre foi sobre amor. Sobre entender vocês.
Mas os comentários que subiam na tela a fizeram se dar conta que o jogo tinha acabado
“Você vendeu a cidade.”
“Entender pra manipular, né?”
“Você é uma pessoa horrível, smt.”
Naquela noite, entrando em crise e sem saber o que fazer ela desativou suas redes.
Em 6 de Julho, o Conselho Internacional de Direitos Humanos (CIDH) publicou uma nota formal solicitando intervenção técnica e jurídica no caso Salvador. A denúncia alegava:
Violação massiva da privacidade civil
Manipulação psicológica em larga escala
Censura institucionalizada de manifestações culturais
O Governo Federal Brasileiro, que até então se mantinha omisso finalmente se posicionou, Em coletiva, o Ministro da Justiça declarou:
"Repúdio veementemente o uso de forças nacionais e meios digitais para silenciar vozes legítimas, censurar meios de comunicação e criminalizar manifestações culturais"
Na semana seguinte, Paolo Fonseca e Carla Fonseca tiveram sua cobertura na barra invadida por agentes federais e foram levados sob custódia, mais 11 membros da equipe de Paolo foram presos preventivamente por crimes contra os direitos civis, uso indevido de dados sensíveis e fraude institucional.
Dias após a prisão de Paolo e Carla as estruturas continuaram de pé, as câmeras ainda estavam nos postes, os telões ainda piscavam mensagens mas estavam vazios. Sem comandos e sem programação.
E então lentamente, a cidade começou a girar de novo, nos muros, os grafites voltaram, nas ruas, rodas de samba e capoeira, no Pelourinho, os tambores do Olodum voltaram a roncar.
O axé não morreu, só foi silenciado.
Mas agora, a cidade tinha voz.
Dois meses depois da queda, o céu sobre a Baía de Todos-os-Santos parecia mais limpo, não porque os drones foram desligados, mas porque as pessoas voltaram a olhar pra cima. Glória caminhava pela Rua Chile, de novo aberta para a cidade, onde os cabos de fibra que alimentavam o centro de comando digital haviam sido retirados e agora substituídos por murais coloridos com frases como:
“Liberdade não se programa.”
Os jornais voltaram às bancas, o rádio voltou a tocar Ivete e Carlinhos, as TVs abriram espaço para os terreiros, para as rodas de capoeira, para o samba, na intenção de reintegrar a cultura para a população.
Na Liberdade, sua família ainda lutava para recomeçar, o emprego não voltou fácil, a comida ainda era contada no fim do mês, Mas havia algo que ninguém mais podia tirar: a dignidade de não ter se calado.
O grupo axé.zip nunca revelou seus rostos, diziam em fóruns abertos, que não era necessário e que o importante é que a cidade entenda que sua força está em suas próprias mãos, A tecnologia pode ser ferramenta de controle, mas também de libertação. E a cidade ainda carregava cicatrizes, o centro histórico, modernizado à força, agora passava por restauração simbólica: igrejas reabertas, casarões reocupados por coletivos culturais, sensores derrubados em rituais públicos, com batuques e bênçãos. As urnas foram reativadas e uma nova eleição foi marcada, os candidatos desta vez tiveram que andar a pé, falar na praça, tocar nas mãos de verdade.
A propaganda era feita na laje, no quintal, na feira.
Ninguém mais acreditava em perfeição.
Salvador sabia que a vigilância poderia voltar e que o silêncio pode ser reprogramado, mas também sabia que uma cidade com memória é uma cidade com escudo.E nas paredes, como uma cicatriz orgulhosa, alguém escreveu em spray amarelo:
“Aqui, a memória virou resistência.”
Glória sorriu, a Salvador que ela conhecia ainda estava ali e estava voltando aos poucos.
Postar um comentário